terça-feira, 4 de maio de 2010

Parecer sobre as consequências da construção de uma ETAR, na Paisagem Protegida da Ribeira do Magano, para a espécie águia-real



Responsáveis pelo documento:
-Conselho estratégico da área protegida

Com a colaboração de:

- Dr. Vítor Fidalgo, Dr. Guilherme Von Cupper e Dra. Nicole Pereira (juristas na área de direito do ambiente)

1- Introdução:

Decorrente do acordo para a construção de ETAR no município de Vila Pouca de Alarico, acordo esse feito pela câmara municipal do município e a multinacional brasileira “João Sebastião Ribeiro & filhos SA, com a aprovação do governo para não emissão de licença de impacto ambiental, foi-nos pedido um parecer pela Associação ambientalista local “Amigos das Águas escuras”. Ao abrigo do art.8º/4/e) do dl 136/2007, compete ao conselho estratégico da área protegida em questão, órgão do ICNB, dar parecer.







2- Análise na generalidade:

A protecção da fauna, no direito português do ambiente, com uma cada vez maior ajuda do direito comunitário, tem sido uma das áreas de maior atenção para a sua preservação.
Desde modo, importa desde logo referir o art. 16º da Lei de Bases do Ambiente:
“ Toda a fauna será protegida através de legislação especial que promova e salvaguarde a conservação e a exploração das espécies sobre as quais recaiam interesses científico, económico social, garantindo o seu potencial e os habitats indispensáveis à sua sobrevivência”.
A matéria e a tutela jurídica da fauna estão intimamente ligadas à existência de áreas protegidas. No caso em apreço temos uma paisagem protegida, que, de acordo com o DL 143/2008, que estabelece o regime da conservação da natureza e biodiversidade, é um dos tipos de áreas protegidas (art.11º/2/d)). Estas são definidas pelo Decreto Lei como sendo “uma área que contenha paisagens resultantes da interacção harmoniosa do ser humano e da natureza, e que evidenciem grande valor estético, ecológico ou cultural (art.19º/1).”
A estreita ligação entre a tutela das paisagens protegidas e a fauna está patente no art.19º/2, onde se refere que um dos objectivos é a “conservação dos elementos da biodiversidade num contexto de valorização da paisagem”.
Podemos ainda mencionar a resolução do conselho de ministros nº102/96, onde é possível verificar a importância que as áreas protegidas têm para o governo:
“A criação e manutenção de áreas protegidas é um objectivo de interesse público nacional, previsto na Constituição e na Lei de Bases do Ambiente.
Considerando que no nosso país são praticamente inexistentes espaços virgens de intervenção humana, a manutenção do património natural é maioritariamente garantida pela população nas áreas protegidas; Considerando que o desenvolvimento preservação são sectores convergentes, dependendo a diversidade biológica das áreas protegidas da manutenção da população no interior das mesmas.”





3- Análise na especialidade:

Quanto ao pedido em concreto, que versa sobre como a águia-real pode ser afectada devido à construção da ETAR naquele local é preciso dar a conhecer a espécie e a sua tutela jurídica.

Sobre a águia-real e a sua tutela jurídica:

A águia-real é uma ave de presa de grandes dimensões, apresenta uma envergadura que varia entre 2,05 e 2,20 m. A uma distância de observação superior a 500 m, as aves adultas parecem ser uniformemente escuras, contudo, observadas de perto é visível uma banda de cor mais clara junto à base das remiges (penas de voo da asa), verificando-se o mesmo na cauda. Na parte superior, destacamos uma banda mais clara nas coberturas das asas. Os juvenis e os imaturos apresentam uma banda de cor branca nas asas e na cauda, tanto no lado superior como no inferior. Todas apresentam a nuca e a coroa mais claras, variando do castanho claro ao dourado.
No que diz respeito ao habitat, esta espécie nidifica essencialmente em habitats rochosos, no entanto, se estes meios escassearem, podem construir os seus ninhos em grandes árvores.
A alimentação da águia-real consiste em mamíferos, aves e répteis, e muitas vezes também recorre a animais mortos.
Um aspecto a não descurar, será o da reprodução, que tem uma importância elevada nesta discussão. A águia-real é uma espécie monogâmica, que realiza apenas uma postura por ano, sendo normalmente constituída por dois ovos (por vezes um ou três)
Quanto ao estatuto de conservação, em termos europeus a águia-real encontra-se na categoria SPEC 3 (Species of European Conservation Concern), que são as espécies que suscitam preocupação a nível europeu. Podemos dizer que no século passado sofreu um grande declínio devido a pilhagem dos ninhos, envenenamento e perseguição humana. Quanto a Portugal, seguindo o livro vermelho de vertebrados, que é elaborado por nós, estando em constante actualização, a águia-real encontra-se “em perigo”, tendo neste momento a sua população estável, mas com um incremento diminuto.
Tal classificação temerosa da águia-real deve obrigar os poderes públicos a repensar que infra estruturas devem ser realizadas ou aceites.
A esta preocupação quanto à águia-real não é omissa a legislação nacional.
O DL 140/99, de 24 de Abril, foi uma transposição de uma directiva comunitária, a chamada “directiva das aves” e “directiva habitats”. Neste DL, ao olharmos para o mapa anexo A-1, anexo ao diploma, encontrarmos como uma espécie protegida Aquila chrysaetos, que se denomina em português de águia-real. Este regime de protecção de espécies, no seu art.11º/1/b) refere que para a protecção das espécies, abrangidas pelo DL, é proibido “perturbar esses espécimes, nomeadamente durante o período de reprodução, de dependência, de hibernação e de migração, desde que essa perturbação tenha um efeito significativo relativamente aos objectivos do presente diploma”. Refere ainda o nº2, desse mesmo art.11º, que estas proibições se aplicam a todas as fases da vida das espécies. Ora, o diploma, de acordo como o art.1º/2 “visa contribuir para assegurar o biodiversidade, através da conservação ou do restabelecimento dos habitats naturais e da flora e da fauna selvagens num estado de conservação favorável, da protecção, gestão e controlo das espécimes, bem como da regulamentação da sua exploração.”.
Obviamente que as partes que pretendem a construção da referida ETAR poderão citar o nº2 do art.1º, que refere que “os objectivos previstos no número anterior (artigo citado supra) são aplicados tendo em conta as exigências ecológicas, sociais, culturais e científicas, bem como as particularidades regionais e locais”, referindo que com a construção da ETAR está previsto um aumento do emprego e investimento estrangeiro da região. Mas cremo que, neste caso, os eventuais prejuízos ultrapassam claramente os benefícios. Tendo em conta que a ribeira do Magano é uma das áreas com mais população da águia-real em Portugal (sendo mesmo uma área chave) e havendo até nesta zona um incremento significativo na reprodução, estamos convictos que a construção da a ETAR em estudo aniquilará quase por completo a espécie, tendo efeitos ainda maiores na reprodução.
Mais argumentos surgem na defesa da águia-real: como referi na análise na generalidade, a protecção de paisagens protegidas está intimamente ligada à protecção, sendo a Ribeira do Magano uma área classificada como paisagem protegida (art.1º do decreto regulamentar 15/99 de 26 de Junho), pensamos que aqui reside mais um dos fundamentos para a não construção da ETAR. Não nos podemos esquecer que de entre os fundamentos para a constituição de áreas protegidas está o facto de estas se apresentarem com áreas terrestres possuidoras de uma raridade biológica “Devem ser classificadas como áreas protegidas as áreas terrestres e aquáticas interiores e as áreas marinhas em que a biodiversidade ou outras ocorrências naturais apresentem, pela sua raridade, valor científico, ecológico, social ou cénico, uma relevância especial que exija medidas específicas de conservação e gestão, em ordem a promover a gestão racional dos recursos naturais e a valorização do património natural e cultural, regulamentando as intervenções artificiais susceptíveis de as degradar” (art.10º/2 dl 142/2008), e também o facto de que os objectivos da “classificação de uma área protegida visa conceder-lhe um estatuto legal de protecção adequado à manutenção da biodiversidade e dos serviços dos ecossistemas e do património geológico, bem como à valorização da paisagem” (art.12º dl 142/2008).
Importa por último referir que outra das razões para que não concordemos com a construção desta ETAR, não obstante os benefícios que podem trazer para a população e respectiva região, está o facto de esta poder ser construída noutra zona do concelho, ou seja, o facto de existirem alternativas credíveis dentro do concelho, leva a não ser explicável o facto de se querer construir uma ETAR dentro de um espaço que é está classificado como área protegida. Na realidade dos factos, verificamos que uma área protegida, sem habitações perto e virgem, tenham vantagens económicas e políticas, devido à não contestação social, mas, nesta balança de direitos, ou mais juridicamente, nesta colisão de direitos, leva claramente vantagem a perseveração das áreas protegidas, pois como refere o preâmbulo do dl 142/2008 “Face aos compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado Português, são reforçados os mecanismos que permitam a Portugal cumprir as obrigações assumidas quer no âmbito da União Europeia quer no âmbito da Organização das Nações Unidas — suster a perda de biodiversidade até 2010 e para além —, de acordo com um conceito dinâmico de conservação da biodiversidade, na relação desta última com as alterações climáticas, no combate à desertificação e erradicação da pobreza, no seu papel transversal ao desenvolvimento sustentável, na necessidade de alargar o reconhecimento público da biodiversidade, integrando-a no sistema económico e empresarial, e no reconhecimento de cada cidadão como directa e simultaneamente beneficiário e implicado na gestão da biodiversidade”.
Resta afirmar que esta protecção das áreas protegidas e da biodiversidade, em que inclui a protecção da águia-real, não advém só de comandos legislativos. A tutela jurídica advém logo, a nosso ver, da Constituição da República Portuguesa. No seu art.66º/2/c) refere-se que incumbe ao Estado “criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a perseveração de valores culturais de interesse histórico”. A esta disposição não se pode contra argumentar com outra disposição constitucional, nomeadamente o art.9º/g), que refere que o Estado deve promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional. O governo, em conselho de ministros acerca da construção de esta ETAR referiu que ela seria de profundo interesse nacional para desenvolver os municípios do interior, mas pensamos que este desenvolvimento não deve ser feito à custa da natureza e da biodiversidade, e até porque o art.9º/f) da CRP refere o termo harmonioso, o que indica uma certa harmonia com o ambiente e o desenvolvimento sustentável.

4- Conclusão:

Como conclusão, em termos lacónicos, pensamos que a construção da ETAR deve ser abortada. Embora não seja directamente o objecto do nosso estudo, não compreendemos a razão pela qual o governo aprovou, através de resolução de conselho de ministros, a construção desta ETAR, com o fundamento de “profundo interesse nacional”. Não se compreende mais ainda, quando assistimos a um reforço da protecção jurídica (em muito emanada do direito comunitário), por parte de decretos-lei do governo. São sinais contraditórios. Só podemos concluir que continua a existir uma concepção demasiado antropocêntrica de ambiente, em que a promoção de políticas que sejam bem “vistas” aos olhos dos eleitores continuam a sobrepor-se às exigências de tutela do ambiente exigidas pela Constituição Portuguesa.


Nota: segue em anexo o mapa da localização da Ribeira do Magana e a sua área protegida, e localização primordial da águia-real.
Segue ainda o documento em que consta o pedido de parecer por parte da Associação ambientalista “Amigos das Águas Escuras”.

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